sexta-feira, 26 de março de 2010

Crise II

A vida dele se resumia a duas coisas:
trabalho era a primeira,
a vida toda, a outra coisa.

Trabalhava feito louco,
dia e noite, sem descanso
E a vida, a outra, levava...

Veio a crise, de mansinho
E levou-lhe tudo de uma vez
A vida que pensava ter,
e o trabalho que o fazia viver.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Silêncio de olhos verdes

Silêncio de olhos verdes

Era uma viagem normal. Ao menos, parecia normal. Passagem comprada e logo estaria de volta, em casa, depois de um fim de semana esplêndido na companhia dos amigos. Especialmente pela companhia daquele amigo.
Feliz. Estava realmente feliz ao se acomodar na poltrona de número 10, perto da porta, longe do banheiro, na fileira do motorista, como lhe ensinara a avó.
Porta fechada e as instruções.
Primeira etapa da viagem, tudo em paz. O motorista cantarolava uma canção conhecida, muito antiga. Por vezes, assobiava. O ônibus era confortável, reclinava quase como um leito; perfeito!
Ouvia músicas quando de repente ouviu um ruído que parecia indicar que aquilo tudo era um sonho. E que era hora de acordar.
-- Foi o tambor. Tenho certeza que foi o tambor. – repetia o motorista levando as mãos à cabeça.
  Desceram todos, ela inclusive, no meio da estrada, o sol a pino e um ônibus quebrado na beira da estrada.
  Em solidariedade ao motorista, outros ônibus paravam e ofereciam carona aos pobres desalentados.
Pouco a pouco, sumiram os outros. Na vez dela, parou um ônibus esquisito, visivelmente velho e mal cuidado. Hesitou. Pensou, porém, que ainda iria trabalhar naquele mesmo dia que já apontava sua segunda metade e decidiu embarcar assim mesmo.
Estava certa, o ônibus era péssimo! Já rodava há 3 dias, vinha de longe, muito longe e não cheirava bem...
Não por culpa das pessoas, mas é que ônibus que roda há mais de 1 dia na estrada, sem parar, não pode mesmo cheirar bem.
Aproximou-se de um banco vazio. Ao lado, uma senhora de olhos verdes e lenço na cabeça a olhava como se a esperasse há muito. Pediu licença e sentou-se. Acomodou-se como pôde, sentiu dificuldade extrema em acomodar suas longas pernas mas conseguiu, enfim, se ajeitar.
Ao lado, a senhora a olhava, fixamente como quem deseja perguntar algo. Ninguém sabe porquê, mas ela nada dizia.
Aquele silêncio complacente ia-lhe  corroendo o espírito, mas nada podia fazer a não ser esperar.
Esperou. Esperou e repetiu a espera.
A viagem chegou ao fim. A senhora, a olhá-la fixamente como quem deseja perguntar algo.
Não houve pergunta. O ônibus parou, todos desceram. A senhora de olhos verdes também e, com um sorriso e um aceno, já ao longe, tentou enfim lhe dizer o que tanto a angustiara a viagem toda...
Não o pôde. A família que a aguardava no desembarque, sufocou-a com uma chuva de beijos e abraços infindos. Era uma festa linda de se ver, em plena rodoviária.
Todo aquele silêncio, já de malas nas mãos, a fez olhar para trás pela última vez.
Percebeu então que havia uma semelhança muito grande entre uma menina que abraçava a senhora e sua própria imagem, embora aquela parecesse bem mais magra e alegre que ela, dadas as circunstâncias da penosa viagem.
E foi assim que o silêncio sem fim teve, ao menos, explicação.